Hoje, 27 de julho, é o Dia Nacional da Prevenção de Acidentes de Trabalho, um marco histórico na luta dos trabalhadores por melhorias nas condições de segurança e saúde do trabalho. A data de hoje se tornou oficial em 1972 e, há 50 anos, marca o início da implementação do Serviço Obrigatório de Segurança e Medicina do Trabalho em empresas com mais de 100 empregados. Na época, o Brasil registrava quase dois milhões de acidentes de trabalho por ano.
Atualmente, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a cada 15 segundos, morre uma pessoa por acidente de trabalho no mundo. Isso significa que mais de 6,3 mil mortes por acidente de trabalho são registradas por dia no planeta, o que corresponde a 2,3 milhões de óbitos por ano. No Brasil, em 2021, foram comunicados 571,8 mil acidentes e 2.487 óbitos associados ao trabalho. O número representa um aumento de 30% em relação ao ano anterior, segundo o Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho/Smartlab. Para reverter esse quadro, é importante que empregadores e trabalhadores estejam comprometidos com a promoção de um ambiente de trabalho seguro e saudável. Garantir a segurança e a saúde no trabalho é um dever de todos.
Além de englobar a prevenção do acidente de trabalho, esta data também abrange a prevenção em relação às doenças ocupacionais. De acordo com magistrados que atuam na Justiça do Trabalho mineira, a Covid-19 pode ser considerada uma doença ocupacional, caso ela seja adquirida em razão do exercício do trabalho, principalmente se for demonstrado que o empregador não tomou as medidas preventivas adequadas.
Aspectos da doença ocupacional no contexto da pandemia
Em sentença recente do TRT-MG, a juíza reconheceu a Covid-19 como a doença ocupacional que provocou a morte de uma auxiliar de enfermagem. Apesar de ter comorbidades, ela não foi afastada do serviço pela empregadora.
Uma instituição de saúde foi condenada a pagar indenização por danos morais de R$ 150 mil à filha de uma auxiliar de enfermagem pela morte da mãe por Covid-19. A decisão é da juíza Alessandra Junqueira Franco, titular da Vara do Trabalho de Alfenas-MG.
A auxiliar de enfermagem trabalhava desde 1988 no hospital de propriedade da empregadora e faleceu em 2020, após o agravamento da Covid-19. Segundo apurou a magistrada, embora a trabalhadora pertencesse ao grupo de risco, a empresa não providenciou afastamento da profissional em momento crítico da pandemia (2020).
Na análise da juíza, houve possibilidade concreta de que a doença que vitimou a empregadora tenha sido adquirida no ambiente de trabalho, justamente pela exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho desenvolvido, nos termos previstos no artigo 20, item II, parágrafo primeiro, alínea “d”, da Lei 8.213/1991, aplicado ao caso, por analogia. Também foi considerado que a contaminação resultou das condições especiais em que o trabalho era executado e com ele se relacionava diretamente, de forma a configurar doença do trabalho, nos termos do artigo 20, item II, parágrafo segundo, da Lei 8.213/1991.
Houve o reconhecimento da responsabilidade da empregadora pelos prejuízos morais causados à filha da profissional, com a condenação da empresa à indenização pretendida.
“Não há como negar que o dano à filha da empregada falecida é evidente, à medida que o adoecimento da empregada, por Covid, acabou por conduzi-la à morte. As consequências danosas sob a ótica do relacionamento pessoal, familiar e social são óbvias, notadamente nos casos de contaminação pela Covid-19, atingindo diretamente o íntimo da filha e afrontando o patrimônio imaterial, cuja dor somente a pessoa envolvida sabe quantificar”, destacou a juíza na sentença.
A decisão se baseou no inciso X do artigo 5º da Constituição Federal de 1988 e nos artigos 186 e 927 do Código civil, que protegem a integridade moral da pessoa e asseguram a reparação no caso de violação dos direitos de personalidade.
O valor da indenização foi fixado levando em conta a vida profissional e econômica da auxiliar de enfermagem, em contrapartida às condições financeiras da empregadora, assim como a extensão do abalo psíquico sofrido pela vítima. Constou da decisão que o valor da indenização deve ter como norte a reparação do sofrimento e, ainda, o objetivo de coibir a reiteração da prática pela empregadora, atuando, nesse último caso, como medida corretiva.
Para a magistrada, a conformidade e adaptação de valores com o previsto no artigo 223-G, parágrafo primeiro, inciso III, da CLT, o qual dispõe sobre a tarifação dos danos morais, não deve ser admitida, no caso, porque afronta o dispositivo constitucional, de forma que a única interpretação possível é a de que a regra celetista estabeleceu apenas parâmetros de arbitramento, sem qualquer vinculação.
Entenda o caso
A autora pretendeu o reconhecimento do nexo de causalidade entre a doença que causou a morte da mãe (Covid-19) e o trabalho exercido. Afirmou que a empregadora teve responsabilidade no ocorrido, porque não afastou a trabalhadora do serviço, embora ela pertencesse ao grupo de risco. A empresa, por sua vez, negou que a auxiliar de enfermagem tenha adquirido Covid-19 no ambiente de trabalho, alegando que o contágio poderia ter ocorrido em qualquer outro local.
Covid-19 X Doença ocupacional
Sobre a possibilidade da Covid-19 ser considerada doença ocupacional, a magistrada ressaltou que a legislação não menciona hipótese específica da pandemia. Contudo, entendeu que deve ser aplicado ao caso, por analogia, o artigo 20, item II, parágrafo primeiro, alínea “d”, da Lei 8.213/1991, que considera doença do trabalho a “doença endêmica adquirida por segurado habitante da região em que ela se desenvolva”, desde que “resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho”.
Conforme constou da sentença, o artigo 29 da Medida Provisória 927 estabelecia que: “Os casos de contaminação pelo coronavírus (Covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal”. Entretanto, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.342, suspendeu a eficácia do dispositivo.
Como pontuou a julgadora, é fato que a pandemia desencadeada pela Covid-19 não possui limitações territoriais e envolve agente patogênico de fácil transmissão, com milhares de vidas ameaçadas, tanto em razão da gravidade como da propagação do vírus. “Trata-se de um quadro alarmante mundial, e não há, como regra, uma relação direta com as condições do meio laboral, sendo vários os locais de possível contágio”, destacou. Nesse contexto, na avaliação da magistrada, apesar do posicionamento adotado pelo STF de suspender a eficácia do artigo 29 da MP 927, não há como simplesmente presumir que o empregado tenha adquirido Covid no ambiente de trabalho.
De acordo com a juíza, não se pode esquecer de que, por outro lado, a responsabilidade de indenizar surge da configuração de alguns pressupostos, entre eles: o nexo de causalidade entre a conduta do ofensor e o dano, os prejuízos suportados pela vítima, a culpa quanto ao dano causado, nos termos do artigo 186, do Código Civil, e artigo 7º, inciso XXVIII, da Constituição Federal. Segundo ponderou a magistrada, em casos como esse, que envolvem o adoecimento por Covid-19, tendo em vista as particularidades apontadas, não há como se estabelecer o nexo de causalidade, com base nos mesmos critérios adotados para as demais doenças originárias do trabalho.
Possibilidade concreta de que a contaminação tenha ocorrido no ambiente de trabalho
Não houve dúvidas de que a profissional adquiriu Covid-19 durante a vigência do contrato de trabalho e de que a doença foi a causa da morte, como, inclusive, registrado no atestado de óbito. Nesse quadro, para averiguação do nexo de causalidade entre a doença e o trabalho, assim como da responsabilidade do empregador, a juíza considerou as seguintes questões: 1) Se houve prova de que a contaminação foi “resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho”, para efeito de aplicação, por analogia, do artigo 20, inciso II, parágrafo primeiro, alínea “d”, da Lei 8.213/1991. 2) Se a empresa cumpriu procedimentos de prevenção e precaução em relação aos riscos de contaminação pelo coronavírus no ambiente de trabalho. 3) E, por fim, se a contaminação resultou das condições especiais em que o trabalho é executado e com ele se relaciona diretamente, de forma a configurar doença do trabalho, nos termos do artigo 20, inciso II, parágrafo segundo, da Lei 8.213/1991.
Nesse ponto, a julgadora chamou a atenção para o fato de que a profissional desempenhou a função de auxiliar de enfermagem, em hospital de grande movimentação de pacientes, o que, inclusive, foi reconhecido pelo representante da empregadora em depoimento. Na visão da juíza, ainda que o hospital não fizesse atendimento direto de pacientes com Covid-19, os quais eram encaminhados para a Santa Casa local, não há como afastar a presunção de que inúmeros pacientes contaminados passaram por aquela localidade. Sobretudo em 2020, ano do falecimento da trabalhadora, quando teve início a pandemia no Brasil, a doença ainda era desconhecida e o país vivia um momento de caos. Conforme salientou a juíza, é fácil presumir o temor entre os trabalhadores do hospital, na época, no que diz respeito ao contágio, fato inclusive relatado por testemunha.
Além disso, em depoimento, o representante da empregadora confessou que, naquela ocasião, 40 trabalhadores do hospital testaram positivo para Covid-19 e apenas a auxiliar de enfermagem veio a falecer. A prova oral ainda demonstrou que, embora a trabalhadora não realizasse triagem dos pacientes e não atuasse no pronto-socorro, ela estava inserida em ambiente hospitalar, em contato direto com os colegas de trabalho e com os pacientes atendidos naquela unidade.
Tendo em vista as circunstâncias apuradas, a magistrada entendeu haver possibilidade concreta de que a doença que vitimou a ex-empregada tenha sido adquirida no ambiente de trabalho, justamente pelo contato direto determinado pela natureza do trabalho que ela desenvolvia. Concluiu ser cabível a aplicação, no caso, por analogia, do artigo 20, parágrafo primeiro, alínea “d”, da Lei 8.213/1991.
Ônus da prova e culpa da empregadora
No entender da juíza, tendo em vista as circunstâncias especiais do caso, cabia à empregadora comprovar que a auxiliar de enfermagem adquiriu Covid-19 em outra localidade, de forma a transferir à empregada a responsabilidade pelo evento danoso que tirou sua vida. Entretanto, isso não se verificou.
Apesar de uma testemunha ter mencionado a existência de um segundo ofício exercido pela trabalhadora, como cuidadora de um paciente particular, na visão da magistrada, o fato não foi esclarecido a ponto de gerar a possibilidade de que o contágio tenha ocorrido em razão dessa circunstância. A testemunha relatou que a falecida cuidava de um paciente particular, entretanto, não foi estabelecida a frequência dessa prestação de serviços e, na conclusão da juíza, não se comprovou qualquer situação que pudesse legitimar o contágio por essa via, como o fato desse paciente ou algum de seus familiares terem sido contaminados na época.
Relatórios emitidos pela companhia telefônica e apresentados ao processo não evidenciaram, para a juíza, que a técnica de enfermagem esteve transitando por vários locais, em Alfenas, durante o período analisado. Ao contrário, segundo a magistrada, os dados contidos na documentação denotaram uma estabilidade em sua locomoção, na época, com grande predominância em locais determinados, em torre próxima à sua residência. Contribuiu para o entendimento adotado a comprovação de que a auxiliar de enfermagem residia apenas com a filha.
Segundo observou a julgadora, fichas de entregas de equipamentos de proteção individual – EPI´s – e prova oral revelaram que o hospital, de fato, cumpriu a obrigação de entregar os equipamentos de segurança para o enfrentamento da pandemia na ocasião. Mas, na conclusão da juíza, a empresa não foi diligente ao deixar de providenciar o afastamento da empregada das atividades, tendo em vista o evidente quadro de comorbidades. “No particular, ainda que a filha tenha afirmado que a mãe chegou a pedir o afastamento do trabalho (o que não ficou provado, aliás), há de ser ressaltado que esta não era a responsabilidade da empregada, mas, sim, do empregador, que deveria ter conhecimento do estado de saúde de seus trabalhadores e zelar pela proteção deles, principalmente em razão da evidente situação de risco vivenciada no ano de 2020, e, mais ainda, por se tratar de um hospital, local onde a probabilidade de contágio era alta”, destacou na sentença.
Empregada inserida no grupo de risco e não afastada no trabalho
As provas demonstraram que a profissional sofria de obesidade e de diabetes. Ocorrências registradas ainda revelaram quadros de hipotireoidismo, anemia e hipertensão. Os problemas de saúde da auxiliar de enfermagem foram comprovados por relatórios médicos, por relatório da vigilância epidemiológica e pelo atestado de óbito, o qual registrou a morte por insuficiência respiratória aguda, Covid-19, com o quadro de obesidade mórbida (grau III) e diabetes mellitus (tipo II). A prova oral, por sua vez, confirmou que a fragilidade da saúde da empregada era de conhecimento do hospital.
Para a juíza, ficou evidente que a auxiliar de enfermagem era do grupo de risco. Apesar disso, ao contrário de outros empregados do hospital, ela não foi afastada do serviço, fato comprovado por documento apresentado pela própria empregadora e confirmado por testemunha.
Responsabilidade da empregadora
Ao concluir pela responsabilidade da empregadora pela indenização pretendida na ação, a juíza considerou o frágil quadro de saúde da trabalhadora, o enquadramento no grupo de risco e o desempenho de atividades que, por sua própria natureza, a expunham ao contágio, em ambiente hospitalar, somados à falta de precaução mínima da empregadora, que não providenciou o afastamento do trabalho em momento crítico da pandemia, no ano de 2020.
“Não há como olvidar que a culpa da empresa ocorre, no caso, pelo fato de que ao empregador compete zelar pela integridade física de seus empregados, de maneira a não gerar reflexos danosos a sua saúde (artigo 157 da CLT)”, destacou a magistrada. Na avaliação da juíza, houve violação à integridade moral da trabalhadora, a qual encontra proteção constitucional, nos moldes do artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal, e nos termos preconizados pelos artigos 186 e 927 do Código Civil, sendo devida a reparação pelos danos morais sofridos.
Conforme constou da sentença, danos morais são “lesões sofridas pelo sujeito físico ou pessoa natural de direito em seu patrimônio ideal, entendendo-se por patrimônio ideal, em contraposição ao patrimônio material, o conjunto de tudo aquilo que não seja suscetível de valor econômico, tendo como elemento característico a dor, tomado o termo em seu sentido amplo, abrangendo tanto os sofrimentos meramente físicos quanto os morais, propriamente”. A empregadora apresentou recurso, que se encontra em trâmite no TRT-MG.