O Ministério Público Federal (MPF) denunciou o casal D.C.M.R. e V.L.R. e suas filhas R.F.L.R. e B.L.R.N. pelos crimes de redução de trabalhador à condição análoga à de escravo (artigo 149) e violência doméstica (art. 129, § 9º), ambos do Código Penal. Os três primeiros denunciados ainda responderão pelo crime de roubo (art. 157, § 2°, incisos II e V, do CP).
O caso alcançou repercussão nacional, quando a vítima, Madalena Gordiano, foi resgatada no dia 26 de novembro de 2020, na cidade de Patos de Minas (MG), por fiscais da Superintendência Regional do Trabalho (SRT-MG) e pela Polícia Federal (PF), após denúncias de vizinhos que receberam seu pedido de socorro.
De acordo com a denúncia, Madalena foi mantida em regime análogo ao de escravidão pelos empregadores por mais de 15 anos. Durante esse tempo, além de nunca ter recebido qualquer pagamento por seus serviços e de ser submetida a jornadas exaustivas e restrição de locomoção, também lhe foi negado todo e qualquer direito trabalhista, como férias, descanso semanal remunerado e intervalos intra e interjornada, além de direitos fundamentais da pessoa humana, como alimentação, saúde, higiene, educação, lazer, entre outros. Para agravar, os empregadores ainda se apropriaram, ao longo dos anos, de todos os recursos previdenciários que a vítima recebia a título de pensões, civil e militar, pelo falecimento do marido.
Histórico – A relação de Madalena Gordiano com a família teve início em 2005 no município de São Miguel do Anta (MG), na região sudeste de Minas Gerais, próximo ao município de Viçosa. Até então, ela trabalhava para os pais de D.C.M.R., tendo iniciado o trabalho doméstico nessa residência em 1981, quando tinha apenas oito anos de idade.
Os denunciados, que à época residiam em Viçosa, levaram-na para prestar serviços a eles nessa cidade, e cerca de um ano depois, em dezembro de 2006, a família mudou-se para Patos de Minas, a mais de 630 km de distância, tendo a vítima sido levada contra a sua vontade, pois seu desejo era permanecer perto de sua família. A partir daí, ela perdeu totalmente o contato com irmãos e parentes até ser resgatada em novembro de 2020.
Violações trabalhistas – Durante os 15 anos em que trabalhou ininterruptamente para a família, os acusados obrigaram Madalena a cumprir rotina exaustiva de trabalho: sua jornada diária não tinha horário definido de início e término, começando geralmente por volta das duas da madrugada e se estendendo até a noite, por volta das 20 horas, de forma contínua, salvo pausas para se alimentar. A denúncia registra que a vítima tinha que estar sempre à disposição dos empregadores, podendo ser demandada a qualquer hora do dia ou da noite.
Madalena Gordiano também nunca usufruiu repouso semanal de 24 horas consecutivas ou feriados e nunca recebeu férias, tendo trabalhado de forma ininterrupta por mais de 15 anos. As investigações revelaram que, quando os empregadores saíam em viagem e a levavam, faziam-no para que ela continuasse executando as atividades domésticas na casa de veraneio, no mesmo regime adotado em Patos de Minas.
Madalena nunca teve carteira assinada e não recebia qualquer pagamento a título de salário, décimo terceiro ou outros direitos trabalhistas. Segundo os fiscais, a vítima, “ao ser resgatada, sequer sabia o que era salário-mínimo”.
Na verdade, ao longo dos 15 anos, o casal repassava a Madalena apenas uma quantia mensal no valor aproximado de R$ 100, para que ela pudesse comprar roupas, produtos de higiene, remédios etc. Por conta desta completa falta de recursos financeiros, a vítima contraiu dívidas no comércio local “e, com o objetivo de sobreviver, foi obrigada a pedir dinheiro, comida e produtos de higiene pessoal a vizinhos, por meio de pequenos bilhetes que entregava de modo a não chamar a atenção de seus empregadores”, relata o MPF.
Além da jornada exaustiva na casa de D.C.M.R. e V.L.R, Madalena ainda era obrigada a prestar serviços domésticos nas residências das filhas do casal e durante certo tempo também exerceu a função de cuidadora da mãe de V.L.R, arcando com os cuidados de dar banho, alimentar, trocar roupas, carregar a idosa pela casa e até acompanhá-la ao hospital, o que, segundo a denúncia, configurou jornada dupla intermitente.
Condições degradantes – Os empregadores também impuseram à vítima condições degradantes de trabalho, mediante ausência de privacidade, conforto, alimentação e condições de higiene adequadas, além de outras humilhações às quais era submetida.
“A possibilidade de Madalena Gordiano usufruir de seu direito fundamental à vida privada e intimidade foi subtraída por mais de 15 anos pelos denunciados, que forneceram à vítima, apenas para seu repouso noturno, um pequeno quarto, sem banheiro e sem janelas, onde dividia o espaço com um guarda-roupa que, além de servir para acondicionar o pouco vestuário da vítima, era utilizado como despensa para panos de chão, baldes e outros produtos destinados à manutenção da casa”, pontua um dos trechos da denúncia.
A investigação também demonstrou que a alimentação fornecida era insuficiente, sendo comum a vítima passar fome e pedir comida para vizinhos. Além disso, os denunciados também não forneciam produtos de higiene para Madalena, obrigando-a a adquiri-los por meio dos poucos recursos financeiros de que dispunha ou de recebê-los por meio de doações.
Violência doméstica – Os investigadores também apuraram que a vítima nunca foi considerada membro da família e era tratada com desprezo e invisibilidade, “em estado permanente de negligência afetiva”.
Em seu depoimento à Polícia Federal, Madalena relatou que V.L.R., de forma rotineira, a insultava, dizendo que ela não “era nada dela”, e que se o marido pudesse, “jogava ela na rua”. Além das ofensas morais, que também eram praticadas rotineiramente pelas filhas do casal, Madalena sofria beliscões, a título de agressão e repreensão, o que a levou a nutrir grande medo de seus empregadores.
Mantida num sistema de aprisionamento por dependência, ela era proibida de conversar com vizinhos e só tinha autorização para participar de algumas atividades religiosas.
A desumana jornada de trabalho, em condições degradantes, que D.C.M.R. e V.L.R. submeteram Madalena Gordiano ao longo de 15 anos causaram à vítima danos físicos e mentais, tais como dores de coluna, com irradiação para as pernas, e lombalgia, além de transtornos de ansiedade, tristeza, depressão e dificuldades para dormir.
Roubo – O MPF ainda acusou os empregadores D.C.M.R, V.L.R. e sua filha R.F.L.R. da prática do crime de roubo, eis que eles se apropriaram dos cartões bancários da vítima, movimentando e sacando quantias em seu próprio benefício.
Segundo a denúncia, desde o ano de 2003, quando ainda residia em São Miguel do Anta, Madalena Gordiano é titular de dois benefícios previdenciários – um de pensão por morte do INSS e outro de pensão por morte militar – em decorrência do falecimento de seu marido. Para receber os valores, ela abriu uma conta bancária, sendo-lhe disponibilizado o respectivo cartão eletrônico.
Acontece que, logo em seguida, o casal apoderou-se desse cartão, obteve acesso à respectiva senha, e a partir daí, de forma livre e consciente, passou a subtrair, rotineiramente, valores da conta-corrente de Madalena Gordiano, mediante saques, transferências eletrônicas, celebração de contratos de empréstimos e realização de compras, sem conhecimento ou concordância da verdadeira titular do dinheiro. Na verdade, ela era obrigada por D.C.M.R. a assinar diversos documentos bancários, os quais, conforme se apurou, consistiram, entre outros, em alteração de senha, celebração de contratos de adesão e solicitação de alteração de limites.
D.C.M.R chegou a realizar, de forma fraudulenta, o registro de sua própria biometria digital, o que lhe permitiu acessar a conta-corrente de Madalena e realizar quaisquer operações de seu interesse. Os investigadores tiveram acesso às imagens registradas nos terminais de autoatendimento e puderam constatar que todos os saques nas contas da vítima foram realizados pelo acusado.
De acordo com as apurações, entre os anos de 2003 e 2020, o casal subtraiu mais de um milhão de reais de Madalena Gordiano, fazendo dos benefícios previdenciários uma fonte de renda da família, enquanto a titular deles era mantida em regime análogo ao de escravidão.
Além dos saques e apropriação, também foram celebrados ao longo dos anos diversos contratos de empréstimo em nome de Madalena, bem como milhares de compras, físicas e pela internet, em supermercados, padarias, restaurantes, lanchonetes, farmácias, salões de beleza, postos de combustível, lojas de roupas e calçados, entre outras. O cartão bancário de Madalena também foi utilizado para uso em aplicativos como iFood, Spotify e Uber.
Denúncia recebida – No último dia 22 de abril, a Justiça Federal recebeu a denúncia do MPF e instaurou a Ação Penal nº 1000437-52.2021.4.01.3806. “Verifica-se na exordial que os requisitos necessários para o recebimento da denúncia estão presentes. A descrição dos fatos foi precisa. Além disso, o Parquet expôs a relação de causalidade entre o suposto ilícito penal e cada um dos denunciados”, escreveu o magistrado na decisão.
Se condenados pelos crimes de trabalho escravo e violência doméstica, os acusados estarão sujeitos a penas que, somadas, podem ir de 2 anos e 3 meses a 11 anos de prisão. O crime de roubo tem pena prevista de 5 anos e 4 meses a 15 anos de prisão.
Fonte: Assessoria de Comunicação Social
Ministério Público Federal em Minas Gerais